Não havia uma multidão correndo atrás de mim querendo me punir. Não foi isso. Também não passei a receber cartas de estudiosos em Literatura a me questionar. Eles nem teriam tempo. Nem tive pesadelos com sílabas poéticas caindo sobre minha cabeça, ou a fórmula métrica de um soneto se desenhando misteriosamente sobre a tela do meu computador. Nada disso.
Foi bem mais simples. Deparei-me – e não é a primeira vez – com a instigante discussão acerca da responsabilidade de quem escreve. E aí sim, chuva de perguntas: Por que escreve? Para que escreve? Com que direito publica? E feito isso, como se intitula?
Instantes de ruga na testa e acuada por uma seta que apontava para mim, relaxei, desarmei e deixei cair os escudos ao som da linda canção da Mariana Aydar, que me veio à lembrança com ternura de absolvição:
"Eu não escrevo pra ninguém e nem pra fazer música
E nem pra preencher o branco dessa página linda
Eu me entendo escrevendo
E vejo tudo sem vaidade
Só tem eu e esse branco
Ele me mostra o que eu não sei
E me faz ver o que não tem palavras
Por mais que eu tente são só palavras
Por mais que eu me mate são só palavras”
Se as palavras me saltam, eu salto junto. Não tenho medo de altura, nem de avaliação. Para o meu português ruim, há dicionário. Não meço, ignoro a métrica. E por puro desacordo, ignorarei também o Novo Acordo, até o último dia. Não conto as sílabas, nem os versos. Não me prendo, simplesmente porque não me pretendo tanto. Se elogiam o ritmo, agradeço, mas ele acontece, é porque a vida é assim, ritmada, ora mais lenta feito bolero, ora sofrida feito tango, ora mascarada de alegria feito samba-canção. E também porque leio Elisa Lucinda, que escreve – ela sim, consciente – com um ritmo incontestável, com rimas desinibidas, arteiras, a deslizar por entre os versos, dando um tom à leitura, que mais parece música.
E eu com isso? “Eu me entendo escrevendo e vejo tudo sem vaidade”. E balancem a cabeça em negativo: eu quero escrever um livro. E também plantar uma árvore. E também quero ter um filho. E depois disso tudo, só aí, eu meço a vaidade. Porque eu quero um livro pra sentir a combinação do cheiro desse meu entendimento com o das páginas novas. Eu quero plantar uma árvore bem maior que aquele feijãozinho que a gente colocou no algodão molhado na escola, lembra? E que meu filho leia muito, e com isso se sinta crescer ainda mais que a árvore.
Não é o desprezar da Teoria Literária, longe disso, por favor! Reivindico-a! Mas é a mais simples reivindicação da palavra, sem esperar, em nome disso, qualquer troféu. E há pressa, porque o prêmio se constitui na escrita, na possibilidade de dizer enquanto é tempo, onde ouso citar Clarice: "As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito."
Ofício para alguns, necessidade para outros, prazer, vício, vaidade e até arrogância, para tantos outros. Motivos não faltam. E entre os meus, não há o de mudar o mundo. Não sozinha. Não com as minhas palavras. Mas as palavras me modificam, são terreno fértil onde jogo o que pulsa para crescer, o que pede para extravasar, clama para ir além. É o que não cabe em mim. É o que insiste em não ficar do lado de dentro, porque o seu endereço está, na verdade, aqui fora. E de fora, só quer respirar. E se alguém desejar inspirar fundo comigo, que bom! Braços abertos!
“Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro.” (Clarice Lispector)
Despretensiosa, vez por outra, me sinto flor.
Imagem capturada do site www.rexonateens.com.br