"Mas que asa (...) só ganha quem planta
no escuro do braço, essa semente de
poder voar" (Maria Rezende)
Noite alta, descortinando o outro dia sem pressa. A permitida lentidão do raciocínio, resfriada pela chuva que cai lá fora, ainda é capaz de mastigar cada fatia do dia que se propõe, lentamente, feito conselho de médico. Só assim para absorver tudo o que pode conter de bom, nutrir-se de possibilidades e chegar à constatação: a tendência ao erro. Sim, pode ser um dia perfeito para errar. Se não se tratar de tendência, digamos que seja disposição. Havia mente, corpo e todas as sinapses dispostas ao erro. E no espinhoso lugar das conseqüências, vácuo.
Não era um pensamento que arquitetava erros clássicos, estáticos. Não era o dia de buscar no desgastado “pra sempre” um lugar almejado, intocável, emoldurável, onde o sol sempre brilha, a lua é sempre de amantes e se chove, é prata. Seria clichê, até pueril gastar o desejável erro crendo num futuro de se alcançar e parar, puxar o freio-de-mão da vida e sentar no trono da contemplação com a sensação de fim de estrada. Treme mais do que faz tremer. Erro tolo. De uma obviedade em que lucro cederia lugar ao luto. Previsível resultado frio para um método morno.
Era uma vontade de erro de alta temperatura. Erro de iminência. Inevitável. Um erro sem depois, sem amanhã. Também não guardava imagem maquiavélica de tridente na mão. Um erro e pronto, daqueles que, quando criança, um dedo em riste e uma cara amarrada dariam o indicativo de que jamais deveria ser repetido. Mas nesse caso, fale baixo, por favor, é erro repetido sim, mas com aquela tal aresta clássica aparada. É erro adulto. É erro para maiores.
E para os maiores, grandes erros. Tão grandes que jamais ousaria repeti-los amanhã. É erro pra hoje, sabe? É erro inconseqüente, daqueles que, quando adolescente, um mês sem mesada daria o indicativo de que jamais deveria ser repetido. Mas nesse caso, por favor, não conte a ninguém, porque é erro repetido sim, mas com aquelas arestas infantis aparadas, não haveria choro de perda, pelo simples fato de que não houve busca cultivada, então nada se encontrou. É erro maduro.
É erro tão maduro que precisa ser saboreado já. Encontra-se na sua maior doçura, na estação certa. É hora de comer e tê-lo, de cometê-lo, usando as mãos, a boca, deixando escorrer pelos braços, sem se importar se faria sujeira, se mancharia. Aliás, as roupas seriam as únicas testemunhas, capazes de guardar quaisquer marcas. E nada além, nenhuma memória suficientemente forte a ponto de resistir a um pouco de água e sabão. No dia seguinte haveria maquiagem bem feita e se os olhos não estivessem espertos, acredite, seria apenas sono.
Um erro sem medo, consciente, único, objetivo, de tal forma a parecer frio e óbvio. Um erro que cede, apenas: ao tempo, à claridade e à confirmação de que a faca perdeu a lâmina. A forma pode ainda ameaçar. Mas serve apenas para isso: para que não se perca a sensação humana, a resposta endócrina ao ato de brincar com fogo.
Não restará cheiro, muito menos saudade. Não se dispersará em curvas, em planos, em suspiros ou desejos póstumos. Precisa manter a magnitude. É relâmpago. É explosão. Não carrega punição como acessório, é erro só e pronto. É a única coisa ímpar nisso tudo. A ação, a vontade, se unem pelo velho e único caminho retilíneo que liga dois pontos. Dois pontos certos a desejar o erro.
Desconheço coisa mais próxima de um grande acerto que um erro bem cometido.
Eis o plano.
Imagem capturada do site: www.cheffrode.net