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sábado, 8 de agosto de 2009

A Minha Budapeste.

Não sei definir o tom da cidade. Nem o bege parisiense, nem o cinza de São Paulo, nem o amarelo de Budapeste. Mas havia o sol, esse sim, amarelo, brilhante e quente, prestes a se esconder naquela imensidão de mar onde eu fora buscar um cheiro diferente, um som que aquietasse, uma cor que acalmasse.

Pouco pôde ser feito além da contemplação. Os pensamentos que povoavam a mente e que nela mal cabiam, se apoderando do corpo, sequer cediam espaço à grandeza exposta até o esgotar do horizonte. O verde do mar remetia à lembrança a cor dos lençóis, da cortina do quarto. O azul límpido do céu, bem poderia ser o tom do sono profundo e exausto. E até o amarelo do sol, mais que ouro, poderia ser dos sorrisos desconsertados que escapoliam nos encontros inusitados. Eu estava lá, mas não estava.

O cair da tarde convidou-me a ver uma outra história, a me envolver na vida dos que não vão além de uma tela, estão sempre a salvo, e lá estava eu, na sala. A única disposta a experimentar desse gosto, talvez a única a querer se despir de outro gosto.
Não havia mais ninguém. A sala poderia ser ocupada, então, por cada um dos meus sentimentos, necessidades, por cada uma das tantas que sou. Antes que as luzes se apagassem, acomodei na primeira fila as vontades. Desconfortáveis, sairiam dali, minimamente cansadas e doloridas, carregando até no corpo as marcas do preço do atrevimento. Mas elas não se importam mesmo com isso. Querem estar perto demais, ignoram as conseqüências, revigoram-se ao sabor do extremo, do novo, do risco.

Lá pelo meio estavam as dúvidas, sentenciadas pela indecisão de saber se deveriam se aproximar dos desejos, ponderadas pelo medo da dor, ou buscar o conforto, de um canto mais atrás, iludidas pela rima pobre entre lembrança e segurança.



Na última fila, eu e todas as lembranças. O melhor lugar para ver tudo, o mais seguro, para saber de cada canto, para reprovar, para rever, para revisitar – e o que é melhor – de tal maneira imperceptível, que poderia sair a qualquer momento sem causar nenhum estrondo. De lá eu veria a primeira fila a chorar, o meio em sua inquietude de não saber o que é melhor e me sentir numa posição de pseudo-controle.


Após o apagar das luzes tratamos – eu e as lembranças – de decodificar cada cena como um ato já conhecido, um cenário íntimo, uma familiaridade que por ora ou outra nos fazia trocar de papel com o desejo tão mal acomodado lá na frente, mas ainda assim sedutor, por sua condição de ver mais de perto, ainda que próxima, também, esteja a dor.

Não faltaram encontros, similaridades. Se não os fossem de forma direta, eu construía as analogias, ainda que absurdas, mas que me cabiam perfeitas. A descoberta com o que move: aquilo que resgata do marasmo acomodado de um cotidiano deliberadamente falido e traz de volta a pulsação. Coisas, gentes, um idioma que dá um sopro numa vida que já era um saco vazio. Descobertas do que já foi um dia conhecido, mas por algum motivo se perdeu, virou estranho. Bem podia ser eu. Havia uma identidade naquela sensação, num outro tempo, num outro lugar, mas era bem assim. Foi bem assim.

Idéias que por outros olhos, até beiravam a loucura. A necessidade de registrar os sentimentos que explodiam em si, naquilo que apaixonava. Paixão pelas descobertas. Esculpí-las na descoberta do amor. Eleger o corpo desejado como páginas da história que queria viver. Também podia ser eu. Não. Ali, bem ali, era eu, quando o amor não coube mais em nenhuma folha de papel e seria em vão ali escrevê-lo. Ousei, e a palavra, ainda que nervosa e tremida, se eternizou em poema:

Queria o poema-teu
Mas de tal forma meu
A não caber no papel.
Faço-te tela
Repouso da minha mão
Corpo teu,
Canção minha,
Inspiração.


Palavras, tão somente. Bastariam as águas do Danúbio, as de Iracema ou mesmo as do meu chuveiro para conduzí-las ao ralo da casualidade, cada uma das letras e todo o rastro de vida que as compuseram. Mas estava gravado, muito mais na minha mente, no meu registro-vivo, protegido por senha, do que propriamente naquele corpo. A partir dali seria história, o meu capítulo preferido, que me renderia os aplausos e a aprovação mais importante: a minha.

Uma fala me chamou atenção: diz-se do húngaro, dada a sua obscuridade, ser o único idioma que o diabo respeita. No meu franco português, sinto-me insultada. Quem sabe se eu aprendesse a negar em húngaro, a saudade – hoje o meu diabo ao lado – viesse a me respeitar.

- Én nem akarok többet!

É encantador. É Chico. Mas é ficção. Luzes acesas, as outras poltronas definitivamente desocupadas. Acho que só eu acreditei até o final. E o caminho de volta foi revolvendo nas línguas mais diabólicas cada uma das cenas que deveriam ser cortadas para que o filme pudesse se eternizar.

Em vão. “Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira”¹. Mais tarde, com a lua resistente, ainda cheia, percebi que o diabo, debochado, não levou fé no meu húngaro forçado, confundiu com algum dialeto, ou não me percebeu, por erros cometidos pelas gírias vacilantes do meu coração, e assim, de acinte, desconstruiu o meu plano perfeito, desmontou meu exército como num estalar de dedos, num abrir de riso, no conforto de um abraço, no calor de um lençol.

Minha exposição não tem idioma. Meu consentimento não está no dicionário. Meu querer não cabe em telas, em livros ou madrugadas. Meu viver é mar.


Nota: A quem conseguiu chegar até o fim, uma merecida "contextualização": O texto é entremeado por percepções do filme Budapeste, do livro homônimo de Chico Buarque. O resto, viagem.

¹ - Trecho do livro Budapeste.

Imagens - arquivo pessoal.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

...eu, em silêncio...

Quem fala, é Mercedes:

Se não era amor, era da mesma família. Pois sobrou o que sobra dos corações abandonados. A carência. A saudade. A mágoa. Um quase desespero, uma espécie de avião em queda que a gente sabe que vai Estabilizar se, só não se sabe se vai ser antes ou depois de se chocar contra o solo.

Avariada Eu bati a 200 km por hora e estou voltando a pé pra casa,.

Eu sei, não precisa me dizer outra vez.

Era uma diversão, uma paixonite, um jogo entre adultos. Talvez este seja o ponto. Talvez eu não seja adulta o suficiente para brincar tão longe do meu pátio, do meu quarto, das minhas bonecas.

Onde é que eu estava com a cabeça, de acreditar em contos de fada, de achar que a gente muda o que sente, e que bastaria apertar um botão que as luzes apagariam e eu voltaria a minha vida Satisfatoria, sem seqüelas, sem registro de Ocorrência?

Eu não amei aquele cara. Eu tenho certeza que não.
Eu amei a mim mesma naquela verdade inventada.
Não era amor, era uma sorte. Não era amor, era uma travessura. Não era amor, eram dois travesseiros.
Não era amor, eram dois celulares desligados.
Não era amor, era de tarde.
Não era amor, era inverno.
Não era amor, era sem medo.
Não era amor. Era melhor.

"Retrato", de Mercedes, em Divã, de Martha Medeiros.