Páginas

domingo, 23 de maio de 2010

Do Desperdício


Desperdício denota alguma perda, e por si só já me soa mal. Desperdício de amor, então, sem querer ser insensível – muito pelo contrário – me parece tão grave quanto jogar comida fora quando há tantos com fome. É perda de tempo, de saúde, de sorriso, de felicidade, de vida. É a fome que, irresponsavelmente, não se sacia.

O filme “Romance” de Guel Arraes traz à tona personagens históricos que vivenciam o desperdício do amor, tendo como pano de fundo a história de Tristão e Isolda, que parece dar pano pra manga de outras tantas histórias de casais e seus amores que terminam sem vivenciá-los em sua plenitude, inclusive a do casal protagonista do filme, que por um mal entendido se separa, vivendo distante longos três anos, com seus amores,expostos ao relento da vida, desgastando-se em vão.

Quando assisti no cinema a versão hollywoodiana de Romeu e Julieta, chorei litros. A história, já conhecida, ganhou naquele instante um corpo e uma lamentação da minha parte que não se conformava. Eu batia o pé em dizer que não era possível que um amor tão grande pudesse acabar daquela forma. Era injusto. Era desperdício.

E isso vale para Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, Pedro e Ana, eu, alguém e o amor que deixamos desperdiçar ali, num tempo qualquer. Sem o “requinte” das grandes tragédias - nem punhal no peito, nem veneno na boca - mas a distância declarada entre dois: que se sabem, que se dizem, que se encontram num sutil lugar ao qual chamarmos de amor. A distância conformada é tão violenta quanto qualquer arma, qualquer veneno. São dois que matam três, a si próprios e ao sentimento que, garantem, permanece vivo.

A grande questão é que na ficção, nos romances históricos, o público, ainda que emocionado, se sente amparado pelos desfechos que de alguma forma conseguem dar um tom romântico à tragédia: morre-se lado a lado, em busca da noite eterna, ou, como no caso de Abelardo e Heloísa, a história reconhece, tardia, a emergência do amor e estão lá, os dois sob a mesma terra, sepultados juntos, unidos para a eternidade, o que em vida não puderam transformar em verdade.

A vida grita outras coisas. A minha, pelo menos. Não me pretendo ser uma versão moderna de nenhum desses casais nem sob a garantia de virar best-seller nem ganhar o oscar. No que eu chamo de vida real e pulsante, algo desse tipo soaria muito mais como um dramalhão mexicano. Sobretudo se não há famílias rivais, instituições que perseguem ou coisas do tipo. O que há, simplesmente, é a construção de que a felicidade pode ser “só” isso. De que o que pode e pede para ser vivido deve ser calado e transformado em memória, como se a vida fosse um trilho do qual eu não posso, sob qualquer hipótese descarrilar, escolher outro rumo, porque aquele que eu tracei, à priori, não conduz mais ao lugar que eu desejava chegar ou então porque meu plano agora é ir a outro lugar.

A felicidade dos amantes só nos comove pela expectativa da infelicidade que os ronda. Sem sofrimento não há romance. Os amantes se amam, mas não conseguem enfrentar os obstáculos e serem felizes. Esse é o segredo do sucesso de Tristão e Isolda e foi isso que os poetas europeus da Idade Média descobriram: amor recíproco e infeliz*. Pode ser uma excelente e infalível receita para a literatura ou cinema, mas no plano da pele, isso vai além da comoção que dura alguns instantes após a leitura ou à exibição na sala de cinema. Uma escolha que pode desencadear o futuro ou engessá-lo na frustração.

O único sofrimento de amor é não ser correspondido*. Esse sim, é o empecilho real, concreto, o sinal vermelho, o atestado do erro. Manter-se fiel ao plano inicial, não ceder ao que o coração dita e a que, de imediato, o corpo reage, para mim, não parece nem um pouco com fortaleza. É desperdício, em qualquer tempo ou lugar, ou história. Desperdício, apenas.


* Falas do Filme Romance.

Imagem: screenshot capturada do filme Romance
Sugestão para ver e ouvir (cenas do filme e a música, de Caetano Veloso), aqui.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Trocando em Miúdos


Música e poesia são cheias de subjetividade. Quantas vezes escrevo querendo dizer outra coisa, ou de tal forma, que haja um entendimento endereçado. Metáforas, vocabulário íntimo, alguns quase-recados dissolvidos em meio à poesia que eu nem sei se chega onde eu quero.

Na leitura não é diferente. E a curiosidade me inquieta. O que quiseram dizer com isso? Que sentimento teria provocado essas palavras, essas rimas, essa pontuação? Quem teria inspirado tal melodia? O que terá sido vivido assim, a ponto de formular um novo conceito para uma palavra fria e que agora soa tão minha?

Felicidade é poder saber. Eu me senti assim quando soube da história da “medida do Bonfim” que aparece em “Trocando em Miúdos”, do Chico Buarque. A música triste, praticamente um despejo, um fim, seus procedimentos práticos e as duras constatações. A medida do Bonfim é aquela fitinha, um souvenir baiano, praticamente um amuleto que a gente amarra no pulso, dá três nozinhos e faz três pedidos. Quando chegou por aqui, na década de 50, era feita de seda, tinha seus escritos bordados com linha dourada e era usada como um colar, ao qual se pendurava um pingente como forma de troca a um pedido, um pagamento de promessa. Ganhou esse nome por ter os mesmos 47 centímetros do braço do Cristo da estátua do Senhor do Bonfim.

O mercado se encarregou de trocar o material de que são feitas as fitinhas e massificar o seu consumo. Quem não tem pedidos a fazer? Três nozinhos seriam até pouco para o tanto que se quer.

Já usei tantas. Já as vi cair de velhas e esgarçadas. Já as quebrei antes do tempo porque os pedidos haviam expirado, já queria outros em seu lugar. A última delas, ainda resiste no pulso e do ritual, eu me lembro bem: no primeiro pedido o que quero, no segundo, o mesmo pedido, afirmando que o quero muito e no terceiro, só pra garantir, ele de novo, deixando claro a qualquer santo que o desejo era raro, nobre e consciente. Ali eu estava, após o primeiro nó, autenticando a minha vontade. Garantindo que não havia erro. Isso mesmo, podem mandar!

Há pouco descobri que as cores das fitas representam os orixás. A que ainda trago amarrada é verde, Oxossi. Representa a caça e a fartura. É provável que um de nós não tenha cumprido sua tarefa a contento. E assim, me descontento.

Por tantas vezes também já cantei essa canção. É quase um exorcismo necessário. Item obrigatório da lista de canções que fazem a trilha dos finais. sem direito a brinde ou aplausos. Mas dessa vez, não há miúdos para trocar. Até as palavras, já foram todas ditas. Em acordo, elas se entrelaçam no peito, feito a fita em meu braço. E mesmo assim, amarradas, se perdem. Vagam soltas no ar, povoam o pensamento que, insistente, não consegue compreender em que matemática humana um mais um é diferente de dois.

A fita ainda não quebrou. Mas hoje a retiro, enfim. Não é preciso esperar para saber o desfecho: “Não me valeu”. Fico com as melhores lembranças – o resto é seu. E o único lamento de que seja agora, é essa “leve impressão de que já vou tarde”.

Para ouvir Chico, aqui. 


Imagem capturada do blog: culturaenutil.wordpress.com

domingo, 9 de maio de 2010

Mãe


Ela:
A mesma que eu poderia ser
E quem sabe
Serei ainda, é o intento
Eu que a sei por dentro
Ambas de gêmeos
Mas únicas
Nas batalhas, nos tormentos.
Miúda, feito formiga
Anda ligeiro
Carrega peso maior que o seu
Fala muito
O doce, o amargo
E sorri largo
Até daquilo que já perdeu.
Será que sou ela?
Será ela, eu?
Quase cabe no meu abraço
E não gosta muito de beijo
Faço de conta que esqueço
Consciente, desobedeço
Nem sabe o quanto é amada
E eu sei o quanto me adora
Pois mesmo já estando aqui fora
Ainda é lá dentro que ela me guarda.