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sexta-feira, 26 de julho de 2013

Giz*



        "No palco, na praça, no circo, num banco de jardim,
 correndo no escuro, pichado no muro, você vai saber de mim..."
Chico Buarque


Se tivesse havido bancos de praça
Não caberiam dois.

Se houvesse um encontro marcado,
Tu terias chegado depois.

A chuva já teria passado,
Os botões estariam fechados
E nenhuma flor pra te sorrir.

Se eu tivesse cometido loucuras
Elas não teriam atestado,
Pois provas não haveria,
Marcas não deixaria,
Todas as precauções tomaria
Assim como tomei.
E pude, então, evitar o encontro:

Minha declaração de amor,
Não escondo, eu a fiz,
Com meu texto em sangue, o mais passional
Mas escrevi sobre o teu muro pintado à cal


Com meu último pedaço de giz.


* Poema publicado como menção honrosa no XIV Prêmio Estadual Ideal Clube de Literatura - Prêmio Juvenal Galeno.

** Imagem retirada da página Olhe os Muros

sábado, 24 de novembro de 2012

A (pouca) fé no samba do loiro





O loiro diz que é bom de samba
Tem papo de bamba
É de duvidar
Faz carinho em pele de tamborim
Recorre a Chico, Adoniran, Jobim
Achando que apenas assim
Já lhe faria acreditar.

Mas a morena toda desconfiada
Quer bem além da batucada pra se convencer
Quer ver o loiro até de madrugada,
De camisa listrada,
Sandália castigada,
De tanto remexer.

E o loiro insiste que é bom no gingado
Que já está respaldado
No ziriguidum
Mas como crer no seu samba falado
Se não tá registrado
Em retrato nenhum?

E a morena ainda tão insistente
É criatura descrente
Quer ver o bamba sambar
Diz que ele tem que dançar aqui perto
E logo o loiro esperto
Vem se desculpar
Diz que seu samba é na outra ponta do mapa
E pensa que escapa
Que vai lhe enganar.

Ela lhe diz com todo seu carinho:
- Vamos pro meio do caminho
É hora de provar
Vamos dançar o samba verdadeiro
Ajuste os pés com o pandeiro
E eu vou acreditar
Vamos sambar no Rio de Janeiro
Me prove que é verdadeiro
O teu papo de sambar.

* poema sambado, pra o poeta diz-que-samba, Ítalo Puccini.



Imagem daqui.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Amplitude






Eis meu mundo moderno:
Até ontem, era só Gêmeos,
E a bipolaridade absolveu a inconstância zodiacal.
Mal sabem,
Bi é pouco, limita
E o meu multi vem de outras vidas.
Meu querer é já
E um passo adiante, já desinteressei.
Porque olho longe
E o horizonte é porta aberta.
Porque depois do azul, pode ser lilás.
Porque o sabor é o da novidade
E o melhor cheiro, estou prestes a respirá-lo.
Para todo o resto, fotografia.

*imagem - arquivo pessoal

terça-feira, 10 de abril de 2012

Do Juízo

Livrado o flagrante, pôde, enfim, postular-se diante da própria consciência para assumir o delito: sentira saudades. Cabisbaixa, de voz estremecida e contorcendo os dedos das duas mãos como se debulhasse um rosário, admitira o que em outros tempos seu definiu por crime.

Sequer esperava o interrogatório: explicava resignadamente cada passo daquele calvário intempestivamente cometido.

Disse que acordara normalmente e lembra-se de ter sorrido diante do espelho enquanto escovava os dentes. Era domingo, o que permitiu um pouco mais de tempo entre as cobertas com o cheiro de alfazema ao qual já se acostumou. Não havia planos e a lembrança veio de súbito. Aprendera desde pequena que as ferramentas que constroem o erro estão quase sempre à mão e cedeu às facilidades.

Em minutos estava entre fotografias e cartas amareladas, embebidas em um perfume antigo, que em nada parecia com a alfazema clara, aquele odor fresco que ousa saudar o dia. E o cheiro não lhe entrava pelas narinas. Reconstituía-se aguçando outros sentidos, como que “tentando recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado da memória”¹. Num instante estavam recolhidas as lembranças, enfileiradas de si, como se em postura militar, dessem satisfação da sua existência, ainda que envoltas em versos perdidos de uma canção que jazia no escuro porão do esquecimento.

Cada detalhe confesso conferia-lhe ares de frieza, mas nada mais eram que puro exorcismo. Precisava desse segundo contato, de ouvir de sua própria boca cada requinte do seu crime, pois era dali que sairia sua sentença.

Não houve sangue, nem qualquer outro vestígio do que fora cometido naquela manhã. Precisava dizer também, em hora da sua confissão juramentada, que não houve lágrimas, tampouco arrependimento. Também não manifestou nenhuma intenção de desculpas ou retratação.

Sabia que seria absolvida. As últimas frases já não sofriam o vacilo da voz e as mãos já repousavam calmas, espalmadas sobre os joelhos. Os olhos fitavam o reflexo do espelho, entendiam com clareza o recado daquele silêncio solícito e eram capazes de prever um novo sorriso.

Estava livre. Inclusive para recair. Na verdade, fez-se lei. Dali em diante estava permitido sentir falta, saudade e até amor, resguardadas as ressalvas que credenciam qualquer legislação que se preze: sem endereço, sem rosto, sem signo zodiacal. Era a saudade ganhando o sonho como sinonímia. Tudo subscrito pela consciência. E confirmado, pelas folhas de calendário que se sucederam. 

¹ trecho do livro "Crônica de uma morte anunciada" - G.G.Márquez

Imagem capturada daqui.

sábado, 24 de março de 2012

Da Liquidez


Rir de tudo e fazer rir sempre foi comportamento festejado. Aparenta simpatia, agrada como companhia, parece que a vida é de um todo bom. E é quase assim. A parte não tão boa, essa que é particular, melhor estar da porta pra dentro, onde as soluções são calculadas, vez por outra até encontradas.

Lá fora é preciso rimar com o sol. E o sorriso que ilumina, vira graça, conta ponto, fica bem diante do olhar-espelho do alheio.

Mas o choro também é raso e nele reside o extravaso. Quem não consegue rir além da própria piada, sente-se incomodado. Transforma de novo em gracejo, que surte efeito contrário.

À flor da pele, as lanças cortam facilmente. E a lágrima é necessária pra lavar o sangue invisível, aquilo que se esvai sobre o talho na pele. A contenção é a certeza da ferida aberta por mais tempo, exposta ao vento e ao sal. É dor na cabeça, que mira o chão.

Lágrima é palavra líquida. É resposta que pode não ser entendida, mas jamais impedida. Palavras precisam sair, como as lágrimas precisam rolar sob pena de virarem pedras a dificultar o próprio caminho ou serem atiradas contra o inocente.

Na poesia, o argumento de autoridade encontrado, que libera o choro, autoriza a palavra, sem qualquer punição:

“...pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra presa
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima
lágrima é dor derretida
dor endurecida é tumor
lágrima é alegria derretida
alegria endurecida é tumor
lágrima é raiva derretida
raiva endurecida é tumor
lágrima é pessoa derretida
pessoa endurecida é tumor
tempo endurecido é tumor
tempo derretido é poema
(...)
palavra lágrima é melhor
palavra é melhor
é melhor poema”

Alivia o choro vital. Lubrifica as engrenagens da alma. Alegra o choro da pura emoção. Aquele raro, que vem da alegria, do riso que não se contém e transborda pelos olhos, molhando os lábios, salgando a língua. Humaniza o choro bobo, que nasce de uma cena sem pretensão, de uma história da televisão, do abraço harmônico de uma canção.

Resultado líquido da própria aceitação.


* trecho do poema de Viviane Mosé.
** imagem retirada daqui.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Enquanto a poesia não vem



Tudo no seu lugar:
O céu, azul
E as borboletas lá.
Ritmo controlado,
Passo acertado.
Sol se põe,
Lua nasce,
Flor se expõe
Corredeira desce.

Enquanto a poesia não vem
Céu encobre
E não há disfarce:
Independente da classe
Toda rima é pobre.


Imagem retirada daqui.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Dois dedos de prosa com Mário Gomes



Anoitecia lá no Dragão do Mar e eu encontro o poeta Mário Gomes. Ele abre de imediato um sorriso porque olho pra ele, como se olhá-lo fosse a obrigação de reconhecê-lo poeta. E que prazer, eu conheço o poeta!

Falei com ele, dos livros seus que tenho dedicados. Falei de um poema que ele fez pra mim e ele perguntou meu nome. Falei sem a ilusão de que a memória do poeta revirasse ao ponto de me reconhecer e usei como referência o nome da amiga e também poeta Nilze Costa, e dos “Poemas Violados”, onde estivemos tantas vezes juntos, lá no Estoril. Mário lembrou imediatamente. Lembrou dos detalhes da impressão do poema, numa folha grande e plastificada, com um furo para colocar na parede, e que irresponsavelmente não sei onde guardei. Talvez nem lembrou. Talvez era esse o padrão do poeta presentear com seus poemas. Mas seu sorriso me convidou ao pleno convencimento.

Mário, o poeta, vive na rua. Sua imagem suja, decrépita e sem qualquer cuidado, agarrado a uma garrafa de vinho barato, me comove e inspira. Alegra e entristece. Mas Mário não perdeu em poesia e eu guardo a certeza de que ela reside e pulsa sob aqueles trapos fétidos.

Mário parece louco.
Mário parece lúcido.

Mário não deixou de entender que a poesia une as pessoas. Não sei se verdade ou imaginação, insistiu em me convidar para um lançamento de livro sobre Fortaleza que haveria lá em cima. E que teria recepção. E que teria coquetel. E que ele estaria lá, às 19 horas.

Mário me emocionou pelo impacto do que eu já sabia. E eu, lúcida, tentando entender o seu lugar, entre perdas e escolhas, um ser ainda mais parecido com Marquês de Sade, empunhando a bandeira da poesia por onde anda, deliberadamente ou não, entre um trago e outro daquele vinho de quinta.

Mário hoje é da rua.
Mas Mário não é anônimo.

E a criança pedinte, da praça lá do Dragão, vendo a nossa conversa, a despedida e o aperto de mão, pergunta:

- A senhora conhece ele?
- Sim, ele é um poeta, sabia?
- Sim, ele sabe mais que nós tudim. Sabe até mais que a senhora.

Ora, menino... Até você sabe mais que eu!

O menino avisa que vez por outra, os outros até batem nele. É o vinho do Mário, ele fica indefeso. E eu peço pro menino não deixar isso acontecer, que chame um adulto. E o menino diz que não, que ele mesmo o defende.

Mário esteve na última Revista Farol. Mas antes disso, já se fizera eterno.
Pronto, Mário. És imortal. Que ação gigantesca!¹, como disseste, desaconselhável aos puritanos. A tua imagem, a tua poesia é esta cidade. É cotidiana e vivida até o último gole a tua “violenta orgia universal²”.


¹ - Ação Gigantesca - Vida e Obra de Mário Gomes
² - "Uma Violenta Orgia Universal" - antologia poética

Sobre o poeta, santo e bandido, aqui.

domingo, 18 de setembro de 2011

Calendários



Bem antes do último dia, suspirava pelos outros, inevitavelmente melhores. Era uma verdade matemática, expressa nos ímpares pelos quais tem mais afeto.

A noite explodiu em cores no céu, abrindo um sorriso em cada tom e cada um dos efeitos era repetido na vidraça clara do olhar. Bastava esperar o dia clarear, sentir os pés descalços na areia, abrir os braços, os olhos e buscar o presente, já desembrulhado e efervescente de vontade de ser.

O que não estava escrito, o que jamais fora previsto é que a velocidade concorreria com a possibilidade, com a vontade e com tantas outras rimas. De repente não foi dando tempo, assim mesmo, no gerúndio, e tudo o que ia acontecendo não ia tendo como continuar. Assim mesmo, no gerúndio.

Foi tudo passando, foi tudo ficando pra trás. Aquele novembro, ainda dá pra ver. Ficou um pouco distante e quando esse novembro chegar, ele irá será magicamente desfeito, oficialmente dissolvido, carregado de descrença para o resto do mundo e ficará guardado na tal caixa-memória, com laço de fita vermelha e uma borrifada de perfume. O pretérito só é perfeito quando guarda um cheiro bom.

Obediente ao poeta, o agosto não foi de esperar setembro, mas ele chegou. Sem festejo, mas trouxe o vento e a presença tênue de pólen no ar. Melhor assim: são flores sem endereço, de cores desconhecidas, vivas, alvoroçadas pelo vento em algum lugar, sem nenhum buquê que as prenda, sem nenhum cartão a elas amarrado, e que carrega, nas entrelinhas um prazo de validade.

Com o vento, o pólen, as flores e a poeira sobre os móveis. É como se o tempo avisasse que é hora da limpeza, da arrumação. Que misticamente ou não, por crença ou superstição, é preciso rever, reordenar, limpar, lavar. Jogar fora o que não serve mais, quem sabe de cinco anos pra cá. O melhor, depois de limpo, pode ficar. Mantém-se na estante. Ou junto com aquele novembro, talvez, para roubar sem alarde um pouco o cheiro bom que ele irá emanar.

Hora da matemática outra vez. É quase sempre possível calcular algo ímpar, cruzar os dois dedos e torná-los um. O mesmo um que pode, em riste, apontar pro alto confessando a posse: este é meu!

Imagem retirada daqui.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Hoje é dia de Maria!!!


..."andando por ali, por acolá", cheguei no Maria Clara - simplesmente poesia para integrar esse grupo de poetas maravilhosas: Renata de Aragão Lopes, Talita Prates, Úrsula Avner, Hercília Fernandes, Nina Rizzi, Adriana Karnal, Lou Vilela, Adriana Godoy, Maria Paula Alvim e Wania.

Obrigada às meninas, pelo convite.
E todos e todas que passeiam por aqui, sintam-se também convidados para conhecer o Maria Clara.


quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Do nado ao nada.



Noite imensa, com ares de interminável. Chovia lá dentro. Mas só lá dentro. Do lado de fora, apenas a ventania da tal primavera que não colore essas cercanias e cujas flores enfeitam somente a poesia que gravita. Vento, muito vento a remexer as ideias, a testar, feito quebra-cabeças, a peça correta no lugar ideal e formar alguma imagem, alguma paisagem, quem sabe de um campo de flores. Mas o vento voltava e a tudo desorganizava, como quem desdenha do desejo lírico de encontrar a verdade, os porquês, as saídas.

Junto com o sol, apenas uma resposta veio clarear: o motivo dos seus braços tão cansados. De olhos fechados pôde ver que nadara demais. Foram dias, horas, estações, folhas de calendários vividas em mar aberto, com braçadas que apontavam para qualquer lugar que não fosse o que estava. Era preciso tomar distância em grandes goles, embebedando o corpo com a ilusão de que havia calmaria no cais. De que haveria calmaria. De que haveria cais. De que haveria.

Houve erro de direção, houve tormenta e houve descoberta. Sem bússola, sem astrolábio, sem Sagres e sem intenção. Sem cais e sem calmaria também. Nadara praticamente uma vida e sem qualquer esforço, seus pés tocavam o chão. Não, o tempo, a distância, as braçadas não levaram à profundidade. Tantas noites de céu com menos estrelas que o comum e a permanência no raso, no superficial, no epidérmico. A pele ressecada, o gosto de sal compartilhado entre o mar e os olhos e a praia como única certeza, a terra: o lugar menos firme que já pôde conhecer.

Não se sabe onde o rumo foi perdido. Ou talvez a consciência tenha partido de uma rajada de vento, de uma onda mais violenta. A disposição de chegar à profundidade incluía a possibilidade de afogamento e isso era sabido. O que não sabia, é que ainda estava completamente submersa e talvez não sobrevivesse a mais uma imersão sem garantia, num espaço de tempo incontável, que não cabe em si nem no mar.

Há fortes possibilidades de não ter sido em vão.

Foto: arquivo pessoal

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Metasaudade*



Se saudade é abstrata,
Palavra inexata,
Essa eu desconheço.
Pois a saudade da qual padeço
Tem corpo, tem peso
Tem gosto de sal.
Ora sintagma coeso,
Ora texto de chanchada nacional.
Conjunção dos sentidos, sobrenome
Que a meus predicados consome.
Saudade minha, exclusiva,
E ainda assim, plural.
E a tua saudade imprecisa
Mora em que tempo verbal?
 
 
Imagem retirada daqui.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Clima(x)*



É que o lugar mais certo
O tal ponto de equilíbrio
Eu encontrei
Na extremidade da gangorra
Na possibilidade de aqui e lá estar:
Segura, pés firmes no chão
Altura, desejo de impulsão.
Como se uma força delicada
Me autorizasse o erro
Sem promessas de punição:
- Abra a porta!
Deixa a tua ousadia entrar.
Se não era bem isso,
Foi o que eu quis escutar.
Não sou de temperatura
Que o morno suporta.
Me traio em verões
Pra depois arder no inverno.
É por pura opção:
Me quero assim, desatenta
Me atirando aos riscos
Feitos a lápis,
Me emoldurando em noites
Feitas à mão.


Imagem retirada daqui.

domingo, 15 de maio de 2011

Dos impasses - ou aquilo que se fala e não se faz.


Andei acreditando da possibilidade de me surpreender. Fiquei esperando, me olhei no espelho, fui dormir com a esperança de acordar outra, de olhar pra mim e ver, finalmente, só a mim mesma. Repeti isso por cento e oitenta e quatro vezes. Em vão. E até quando eu vi mais que dois – o que podia, enfim, ser festa – as outras imagens perdiam o foco. Outras vezes se desfizeram mesmo sem que houvesse o meu desejo.

Já provaram que tudo é transitório, tudo tem um ‘até quando’. De outro lado também provam que há exceção para toda regra, o que faz com que para mim, o amanhã não seja de um todo incógnita. Tudo pode ser novo, tudo pode ser diferente, mas há algo que, intransigentemente se fez imutável, é a certeza prática, assim como eu sei que, estando viva, irei respirar.

O que não está mais aqui é o que se faz mais vivo. Até parece que vida, vida mesmo, é aquela que já se foi, que ficou pra trás. Seria algo como construir hoje o que só será vida mais adiante, agravado pelo fato de que a vida vivida hoje é a constante memória dos “tantos ontens” acontecidos. Isso desorganiza minha linha do tempo. Minha cronologia passa a ser impossível de se desenhar de tantas setas de retrocesso que eu insisto em entortá-las a ponto de apontá-las para o futuro. Quem, em sã consciência, ousará contar a minha história?

Falar de eternidade não me sacia. O “pra sempre” sempre adiado, sempre à espera é cansativo, desgastante e não evita as rugas. Pode até estar longe, mas a distância é suplantável. Mas é preciso um horizonte como parâmetro. É amanhã? Daqui a alguns dias? Ano que vem? Futuro entregue ao Deus-dará requer forças de uma juventude que eu não tenho desde que era quase criança. Nunca me importei em estar numa fila de espera onde eu sei que chegará a minha vez. Sempre chegava.

A pergunta não é mais o que virá depois do sono, porque quase nunca durmo. Pode ser antes ou durante. Com ou sem luz. Vários medos se foram com a invernada. Inclusive a escuridão que toma conta do dia.

Mas é quase tudo falácia. Rendo-me à insanidade, à insistência, ao bater-de-pé do meu pensamento. Nem questiono o quão satânico ou angelical isso pode ser. Nunca descobri onde estão as rédeas que o prendem e se elas verdadeiramente existem, agora as ignoro. Minha vontade ganha melodia de mantra e cria uma esfera impenetrável ao meu redor, garantindo o sonho independente do sono.

Não vigio mais minhas palavras. Não as escondo de mim, nem de quem as precisa ouvir. E eu as ouço mais uma vez. Faço-as ouvir mais uma vez. E elas vão ganhando status: de som, de texto, de fotografia, de pedra. É o meu relicário do que não passou porque eu sei que o é. Naquele vai-e-vem do tempo, só uma coisa é certa: o presente. Esse estado indecente do ser-não-sendo. E que eu insisto apostando, querendo ganhar.

Entendo as boas-vontades que emanam de todos os lados. Mas não gosto que me peçam sanidade, mudança de atitude, força, equilíbrio ou determinação. Não quero que me cobrem uma hora exata para que tudo se transforme, para que tudo mude de direção. Não que eu não possa, mas porque quero provar o contrário. Que aquilo que todos chamam de profundidade ainda é, pra mim, epidérmico. E assim eu rasgo todos os tratados, as teorias da duração e as receitas de auto-ajuda. Ninguém me ouviu pedindo ajuda. Até os conselhos, vá lá, por boa educação, por considerar uma palavra aqui outra ali, as quais eu remendo, sem culpa, na ordem que melhor convir. E se há arrogância nisso, perdão, não há pretensão.

Aceito a potência do que sinto. A alta voltagem. Vez por outra saio do lugar, mudo de posição, mas não de intenção. Quem deveria ser poupado dos meus excessos, da sordidez dos meus desejos, das personagens anônimas que me habitam?

Egoísmo puro, verdadeiro e doce. Sem lágrimas represadas. Sem espera indolor. Sem calma. Sem máscaras. Sem tentativas de uma realidade forjada, de uma felicidade desenhada com papel carbono, que não é minha. É minha loucura lícita. E eu não conheço nada mais lúcido.
 
Imagem retirada daqui.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Imagina*



E havia um facho de alegria
A esbarrar no muro da impossibilidade.
Mas por ser abstrata,
Quase sem alarde
Em energia se fazia
Transpondo ao ponto
De virar realidade.


*Peço ao Chico o título emprestado. Ouve aqui!
**Imagem retirada daqui.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Pueril


 
Porque não é preciso dizer tudo
Há olhos que falam mais
Não conhece amor mudo?
Abraços com jeito de cais?
Pois renove o seu dicionário,
O seu linguajar diário
E ignore toda a rima:
Desnude-me nos versos acima.
 
Imagem CC, retirada daqui.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Receita


Ir ao encontro do medo
Ainda que de olhos vendados.
Buscar o calor do abraço,
Relaxar os punhos cerrados.
É que ainda é cedo
E tudo mal começou:
Subir no próximo vagão
Independente de quem o deixou.
É prestar atenção
Reduzir a tensão
Ou não.
Pois por ser começo
Está permitido o avesso.
É que a ousadia
Essa louca, assanhada, arredia
Pode estar escondida no noturno silêncio
Pode estar recolhida no vazio imenso
Da retirada,
Da incursão.
E pelo sim, pelo não,
Desacorrentados daquilo que é fase
Nada mais nos separa
Além de um inexpressivo quase.
* Poema publicado na Revista Cultural Novitas n°9
** Imagem capturada do blog: www.estaluanova.blogspot.com 
*** Enquanto isso, tem promoção no Bordel Bordado. Passa lá!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Alvo


A palavra certa
Que se faz forte
A palavra inquieta
Que requer sorte
A verdade aberta:
É a palavra-corte.


Imagem capturda do blog: www.blogdamarciamoreira.blogspot.com

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Tô no Bordel!


Por enquanto somos cinco, para receber bem a quem chegar por lá: Carol Freitas, Letícia Losekann, Marjorie Bier, Talita Prates e eu.

Somos "sócias" do Bordel Bordado, mais uma investida literária pra falar de um tudo através das palavras femininas, mas bem longe dos rótulos de fragilidade. 

Vem visitar a gente?

sábado, 8 de janeiro de 2011

Infalível.

 "Mas que asa (...) só ganha quem planta
no escuro do braço, essa semente de
poder voar" (Maria Rezende)

Noite alta, descortinando o outro dia sem pressa. A permitida lentidão do raciocínio, resfriada pela chuva que cai lá fora, ainda é capaz de mastigar cada fatia do dia que se propõe, lentamente, feito conselho de médico. Só assim para absorver tudo o que pode conter de bom, nutrir-se de possibilidades e chegar à constatação: a tendência ao erro. Sim, pode ser um dia perfeito para errar. Se não se tratar de tendência, digamos que seja disposição. Havia mente, corpo e todas as sinapses dispostas ao erro. E no espinhoso lugar das conseqüências, vácuo.

Não era um pensamento que arquitetava erros clássicos, estáticos. Não era o dia de buscar no desgastado “pra sempre” um lugar almejado, intocável, emoldurável, onde o sol sempre brilha, a lua é sempre de amantes e se chove, é prata. Seria clichê, até pueril gastar o desejável erro crendo num futuro de se alcançar e parar, puxar o freio-de-mão da vida e sentar no trono da contemplação com a sensação de fim de estrada. Treme mais do que faz tremer. Erro tolo. De uma obviedade em que lucro cederia lugar ao luto. Previsível resultado frio para um método morno.

Era uma vontade de erro de alta temperatura. Erro de iminência. Inevitável. Um erro sem depois, sem amanhã. Também não guardava imagem maquiavélica de tridente na mão. Um erro e pronto, daqueles que, quando criança, um dedo em riste e uma cara amarrada dariam o indicativo de que jamais deveria ser repetido. Mas nesse caso, fale baixo, por favor, é erro repetido sim, mas com aquela tal aresta clássica aparada. É erro adulto. É erro para maiores.

E para os maiores, grandes erros. Tão grandes que jamais ousaria repeti-los amanhã. É erro pra hoje, sabe? É erro inconseqüente, daqueles que, quando adolescente, um mês sem mesada daria o indicativo de que jamais deveria ser repetido. Mas nesse caso, por favor, não conte a ninguém, porque é erro repetido sim, mas com aquelas arestas infantis aparadas, não haveria choro de perda, pelo simples fato de que não houve busca cultivada, então nada se encontrou. É erro maduro.

É erro tão maduro que precisa ser saboreado já. Encontra-se na sua maior doçura, na estação certa. É hora de comer e tê-lo, de cometê-lo, usando as mãos, a boca, deixando escorrer pelos braços, sem se importar se faria sujeira, se mancharia. Aliás, as roupas seriam as únicas testemunhas, capazes de guardar quaisquer marcas. E nada além, nenhuma memória suficientemente forte a ponto de resistir a um pouco de água e sabão. No dia seguinte haveria maquiagem bem feita e se os olhos não estivessem espertos, acredite, seria apenas sono.

Um erro sem medo, consciente, único, objetivo, de tal forma a parecer frio e óbvio. Um erro que cede, apenas: ao tempo, à claridade e à confirmação de que a faca perdeu a lâmina. A forma pode ainda ameaçar. Mas serve apenas para isso: para que não se perca a sensação humana, a resposta endócrina ao ato de brincar com fogo.

Não restará cheiro, muito menos saudade. Não se dispersará em curvas, em planos, em suspiros ou desejos póstumos. Precisa manter a magnitude. É relâmpago. É explosão. Não carrega punição como acessório, é erro só e pronto. É a única coisa ímpar nisso tudo. A ação, a vontade, se unem pelo velho e único caminho retilíneo que liga dois pontos. Dois pontos certos a desejar o erro.

Desconheço coisa mais próxima de um grande acerto que um erro bem cometido. 
Eis o plano.

Imagem capturada do site: www.cheffrode.net

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Da (inevitável) ordem natural das coisas


                                                                             
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer.
(Chico Buarque)

Passado o tempo necessário
É dada a hora de recomeçar.
Era o que eu bem já sabia
Mas o tal do imaginário
Relutante a negar
Na contramão, antilibertário,
Mesmo com o mundo a girar
Na mesma toada insistia
No lugar de outras notas cantar.

Hoje o peito anistiado
De fôlego inteiro, retomado
E a velha vontade de repetir:
Para chegar é preciso ir.

Não é que me falte medo
Mas é que me sobra vontade
De repente, acordar mais cedo
Sentir a inédita verdade:
É que abismos, meu caro,
Foram feitos pra saltar
E de súbito me jogo
É a pressa de sentir logo
O gosto que me é tão raro:
O prazer de experimentar.

A busca: o que é intenso
Quero tudo de uma vez
Descobri que perder o senso
É minha maior lucidez.

Imagem capturada do blog klaud-mar.blogspot.com