Na noite em que ela julgava que fosse a mais igual, com um céu de estrelas cartograficamente organizadas, tomou-a, de súbito, a possibilidade de desmontar aquele todo já friamente planejado. Daquelas estrelas, a mais bonita e iluminada, logo mais iria, de certo, parar bem em cima dela, dando um brilho de nobreza aos sonhos que ela mais gostava: os que vivia acordada.
Sem nada concreto, sem qualquer palavra que acenasse com uma possibilidade, que fosse, vestiu-se com um sorriso que era capaz de mantê-lo até sob a água salgada do mar. Rapidamente colocou seu mundo numa ordem apresentável. Empurrou alguns problemas para debaixo do tapete, ateou fogo nos restos da noite passada e borrifou cheiro fresco de flor sobre a insistente fumaça densa de solidão que lhe fazia companhia.
Ela se enfeitou, perfumou-se, pôs flor no cabelo e um par de brilhantes no olhar. Dali em diante era só aceitar a companhia redundante do relógio, seu rodear disciplinado e repetitivo de ponteiros que não descansa, não para pra respirar, não interage e é de tal forma frio e desumano, que se quer lhe pedia calma ou desejava sorte.
E era isso. Estava desde sempre entregue à sorte, pois nada, absolutamente nada lhe dava garantia para a construção dessa felicidade antecipada. Nenhuma caução, nenhum seguro, nada. Ninguém a autorizou o sorriso, ninguém a presenteou com a esperança dentro de sua caixa bordada em cores.
E assim experimentara todas as posições de espera: gastando o piso do corredor, visitando cada quadrante da cama, as diversas alturas dos batentes da escada, em cada uma das cadeiras, sobre as pedras... A cada mudança, não lhe custava muito ficar na ponta dos pés e lançar um olhar esperançoso pela janela. Mas lá fora a noite caminhava igual e nenhuma estrela mostrava pretensão de descer nem dava sinais de que viesse clarear seus sonhos.
Depois de um tempo sem fim, a última posição – não escolhida, mas a única a qual reagira: o corpo reto e ímpar sobre as cobertas pares. As luzes aos poucos minguando, o cheiro de flor se esvaindo, o sorriso fechando suas portas e os olhos cerrando em escuridão. Findou-se o perfume, apagou-se o brilho e da secura daquela cena, uma única lágrima, autônoma e implacável, ousou regar o travesseiro numa tentativa inútil de fazer brotar ali as lembranças do que já foi suor, de unhas nele cravadas, de sons que nele foram contidos, de suspiros em exaustão. Mas era tudo árido e estéril, incapaz de fazer nascer qualquer coisa. Havia só um vazio de pensamento que preencheu a madrugada com um sono oco.
Ao acordar, o sol já alto demonstrava que tudo continuava igual. Tudo exatamente igual ao momento em que ela, por vontade, por necessidade própria, decidira que estava no comando das escolhas e entregou-se à pintura de seu painel de ilusão.
Qual nada. Ao redor os lençóis quase intactos e o livro entreaberto com o último trecho lido grifado com lápis verde-escuro: (...) É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. (...)*
Talvez uma madrugada vazia em lugar à festa planejada tenha agregado importantes lições. Havia tristeza naquela manhã, mas havia também consolo. Mais uma vez não sabia de onde vinha mais esse sentimento, mas era coisa sua acreditar no que sentia e conceder vida a isso tudo. E dessa vez sentia tanto, tão intensa e profundamente, que era capaz de apostar que em breve estaria cara a cara – e de pé - com um velho desconhecido: o amor.
* Trecho de Clarice Lispector em Felicidade Clandestina
Imagem capturada do site www.carlossimo.arteblog.com.br