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terça-feira, 18 de maio de 2010

Trocando em Miúdos


Música e poesia são cheias de subjetividade. Quantas vezes escrevo querendo dizer outra coisa, ou de tal forma, que haja um entendimento endereçado. Metáforas, vocabulário íntimo, alguns quase-recados dissolvidos em meio à poesia que eu nem sei se chega onde eu quero.

Na leitura não é diferente. E a curiosidade me inquieta. O que quiseram dizer com isso? Que sentimento teria provocado essas palavras, essas rimas, essa pontuação? Quem teria inspirado tal melodia? O que terá sido vivido assim, a ponto de formular um novo conceito para uma palavra fria e que agora soa tão minha?

Felicidade é poder saber. Eu me senti assim quando soube da história da “medida do Bonfim” que aparece em “Trocando em Miúdos”, do Chico Buarque. A música triste, praticamente um despejo, um fim, seus procedimentos práticos e as duras constatações. A medida do Bonfim é aquela fitinha, um souvenir baiano, praticamente um amuleto que a gente amarra no pulso, dá três nozinhos e faz três pedidos. Quando chegou por aqui, na década de 50, era feita de seda, tinha seus escritos bordados com linha dourada e era usada como um colar, ao qual se pendurava um pingente como forma de troca a um pedido, um pagamento de promessa. Ganhou esse nome por ter os mesmos 47 centímetros do braço do Cristo da estátua do Senhor do Bonfim.

O mercado se encarregou de trocar o material de que são feitas as fitinhas e massificar o seu consumo. Quem não tem pedidos a fazer? Três nozinhos seriam até pouco para o tanto que se quer.

Já usei tantas. Já as vi cair de velhas e esgarçadas. Já as quebrei antes do tempo porque os pedidos haviam expirado, já queria outros em seu lugar. A última delas, ainda resiste no pulso e do ritual, eu me lembro bem: no primeiro pedido o que quero, no segundo, o mesmo pedido, afirmando que o quero muito e no terceiro, só pra garantir, ele de novo, deixando claro a qualquer santo que o desejo era raro, nobre e consciente. Ali eu estava, após o primeiro nó, autenticando a minha vontade. Garantindo que não havia erro. Isso mesmo, podem mandar!

Há pouco descobri que as cores das fitas representam os orixás. A que ainda trago amarrada é verde, Oxossi. Representa a caça e a fartura. É provável que um de nós não tenha cumprido sua tarefa a contento. E assim, me descontento.

Por tantas vezes também já cantei essa canção. É quase um exorcismo necessário. Item obrigatório da lista de canções que fazem a trilha dos finais. sem direito a brinde ou aplausos. Mas dessa vez, não há miúdos para trocar. Até as palavras, já foram todas ditas. Em acordo, elas se entrelaçam no peito, feito a fita em meu braço. E mesmo assim, amarradas, se perdem. Vagam soltas no ar, povoam o pensamento que, insistente, não consegue compreender em que matemática humana um mais um é diferente de dois.

A fita ainda não quebrou. Mas hoje a retiro, enfim. Não é preciso esperar para saber o desfecho: “Não me valeu”. Fico com as melhores lembranças – o resto é seu. E o único lamento de que seja agora, é essa “leve impressão de que já vou tarde”.

Para ouvir Chico, aqui. 


Imagem capturada do blog: culturaenutil.wordpress.com

10 comentários:

ítalo puccini disse...

ah, essas miudezas, essas miudezas.

tão bom quando encontramos pessoas que as percebam assim.

lindíssimo, moni!

e que beleza de música esta!

beijo.

Kelly Marinho disse...

Eu adoro essa música. Lindo texto! Vc tem uma facilidade com as palavras! Coisa que me causa uma grande admiração.
Beijo

Renata de Aragão Lopes disse...

Moninha,
que texto mais fabuloso!

Tenho passeado
pelos conceitos de felicidade
e aqui encontrei
um inédito:

"Felicidade é poder saber."

Não bastasse,
também acabei de publicar
um poema que cita
um pingente!

Que coincidência... : )

Beijo,
doce de lira

Unknown disse...

Obrigada pela canção e pelo texto. Cresci ouvindo Chico por causa do meu pai. E hoje, Chico sempre me faz lembrá-lo com lágrimas e sorrisos.
E adorei o seu entendimento em torno das fitinhas- hoje, puramente um souvenir. Porque desmistificamos tudo assim?!

Grande beijo.

Myrela disse...

Estupefada com a beleza do texto e também estupefada com a coerência do teu sentimento, do começo ao fim (imposto).

Paulo Rogério disse...

Nossa, que bela interação!
Sempre intensa até nas minudências!
Bj!

~*Rebeca*~ disse...

E é essa intensidade no seu texto que faz a diferença.

Beijo imenso, menina linda.

Rebeca

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RICARDO disse...

Já usei tantas e (a maioria) cortei antes da hora.Os nossos desejos mais intensos por vezes tornam-se angustiantes e nos iludimos em pensar que podemos nos livrar deles,porém não é bem assim:
"a medida do Bonfim, justifica o fim para um desejo estacionado dentro de mim."
Um intenso e viajante desejo,tal qual esse intenso e viajante texto.
Moni,esse texto "me valeu."

Gisa Carvalho disse...

Arranca a fita
mas deixa as lembranças
E que venham novas fitas
E se renovem as esperanças.

Anônimo disse...

Desejos e fitas sempre indo e vindo. Não nos cansamos de pedir, não é mesmo? Mas, até as fitas têm seu tempo para cair, assim como os desejos tempo para se realizar.