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terça-feira, 10 de abril de 2012

Do Juízo

Livrado o flagrante, pôde, enfim, postular-se diante da própria consciência para assumir o delito: sentira saudades. Cabisbaixa, de voz estremecida e contorcendo os dedos das duas mãos como se debulhasse um rosário, admitira o que em outros tempos seu definiu por crime.

Sequer esperava o interrogatório: explicava resignadamente cada passo daquele calvário intempestivamente cometido.

Disse que acordara normalmente e lembra-se de ter sorrido diante do espelho enquanto escovava os dentes. Era domingo, o que permitiu um pouco mais de tempo entre as cobertas com o cheiro de alfazema ao qual já se acostumou. Não havia planos e a lembrança veio de súbito. Aprendera desde pequena que as ferramentas que constroem o erro estão quase sempre à mão e cedeu às facilidades.

Em minutos estava entre fotografias e cartas amareladas, embebidas em um perfume antigo, que em nada parecia com a alfazema clara, aquele odor fresco que ousa saudar o dia. E o cheiro não lhe entrava pelas narinas. Reconstituía-se aguçando outros sentidos, como que “tentando recompor, com tantos estilhaços dispersos, o espelho quebrado da memória”¹. Num instante estavam recolhidas as lembranças, enfileiradas de si, como se em postura militar, dessem satisfação da sua existência, ainda que envoltas em versos perdidos de uma canção que jazia no escuro porão do esquecimento.

Cada detalhe confesso conferia-lhe ares de frieza, mas nada mais eram que puro exorcismo. Precisava desse segundo contato, de ouvir de sua própria boca cada requinte do seu crime, pois era dali que sairia sua sentença.

Não houve sangue, nem qualquer outro vestígio do que fora cometido naquela manhã. Precisava dizer também, em hora da sua confissão juramentada, que não houve lágrimas, tampouco arrependimento. Também não manifestou nenhuma intenção de desculpas ou retratação.

Sabia que seria absolvida. As últimas frases já não sofriam o vacilo da voz e as mãos já repousavam calmas, espalmadas sobre os joelhos. Os olhos fitavam o reflexo do espelho, entendiam com clareza o recado daquele silêncio solícito e eram capazes de prever um novo sorriso.

Estava livre. Inclusive para recair. Na verdade, fez-se lei. Dali em diante estava permitido sentir falta, saudade e até amor, resguardadas as ressalvas que credenciam qualquer legislação que se preze: sem endereço, sem rosto, sem signo zodiacal. Era a saudade ganhando o sonho como sinonímia. Tudo subscrito pela consciência. E confirmado, pelas folhas de calendário que se sucederam. 

¹ trecho do livro "Crônica de uma morte anunciada" - G.G.Márquez

Imagem capturada daqui.

4 comentários:

Lígia disse...

Este delito ainda me condena!!!! Aiaiai!
Moni, ainda bem que temos você para traduzir algumas coisas da alma. Bjo

Bebel disse...

Meu Deus, Naizinha que coisa linda!
Sabe aquela coisa de não querer que o texto acabe, que tenha uma continuação? foi assim que fiquei...
Parabénsssss!
Como sempre você consegue se superar...
Bjs cheios de saudade

Indonesia Bali Hotels disse...

Very nice post, i love it

O Profeta disse...

Este pensador, viageiro entre Sois
Esta Ave pousada em mil embarcações
Este barco que passa sem vela ou remo
Esta arca repleta de vibrantes emoções

Esta mestiça flor de açafrão
Este ramo de espinhos cravados na mão
Esta alma que não ousa largar opinião
Este homem vestido de solidão

Ouvi um som profundo e breve
Vindo de uma perdida lembrança
Toquei de leve os trincos da memória
E senti o golpe frio de uma afiada lança

Boa semana


Doce beijo