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sábado, 8 de janeiro de 2011

Infalível.

 "Mas que asa (...) só ganha quem planta
no escuro do braço, essa semente de
poder voar" (Maria Rezende)

Noite alta, descortinando o outro dia sem pressa. A permitida lentidão do raciocínio, resfriada pela chuva que cai lá fora, ainda é capaz de mastigar cada fatia do dia que se propõe, lentamente, feito conselho de médico. Só assim para absorver tudo o que pode conter de bom, nutrir-se de possibilidades e chegar à constatação: a tendência ao erro. Sim, pode ser um dia perfeito para errar. Se não se tratar de tendência, digamos que seja disposição. Havia mente, corpo e todas as sinapses dispostas ao erro. E no espinhoso lugar das conseqüências, vácuo.

Não era um pensamento que arquitetava erros clássicos, estáticos. Não era o dia de buscar no desgastado “pra sempre” um lugar almejado, intocável, emoldurável, onde o sol sempre brilha, a lua é sempre de amantes e se chove, é prata. Seria clichê, até pueril gastar o desejável erro crendo num futuro de se alcançar e parar, puxar o freio-de-mão da vida e sentar no trono da contemplação com a sensação de fim de estrada. Treme mais do que faz tremer. Erro tolo. De uma obviedade em que lucro cederia lugar ao luto. Previsível resultado frio para um método morno.

Era uma vontade de erro de alta temperatura. Erro de iminência. Inevitável. Um erro sem depois, sem amanhã. Também não guardava imagem maquiavélica de tridente na mão. Um erro e pronto, daqueles que, quando criança, um dedo em riste e uma cara amarrada dariam o indicativo de que jamais deveria ser repetido. Mas nesse caso, fale baixo, por favor, é erro repetido sim, mas com aquela tal aresta clássica aparada. É erro adulto. É erro para maiores.

E para os maiores, grandes erros. Tão grandes que jamais ousaria repeti-los amanhã. É erro pra hoje, sabe? É erro inconseqüente, daqueles que, quando adolescente, um mês sem mesada daria o indicativo de que jamais deveria ser repetido. Mas nesse caso, por favor, não conte a ninguém, porque é erro repetido sim, mas com aquelas arestas infantis aparadas, não haveria choro de perda, pelo simples fato de que não houve busca cultivada, então nada se encontrou. É erro maduro.

É erro tão maduro que precisa ser saboreado já. Encontra-se na sua maior doçura, na estação certa. É hora de comer e tê-lo, de cometê-lo, usando as mãos, a boca, deixando escorrer pelos braços, sem se importar se faria sujeira, se mancharia. Aliás, as roupas seriam as únicas testemunhas, capazes de guardar quaisquer marcas. E nada além, nenhuma memória suficientemente forte a ponto de resistir a um pouco de água e sabão. No dia seguinte haveria maquiagem bem feita e se os olhos não estivessem espertos, acredite, seria apenas sono.

Um erro sem medo, consciente, único, objetivo, de tal forma a parecer frio e óbvio. Um erro que cede, apenas: ao tempo, à claridade e à confirmação de que a faca perdeu a lâmina. A forma pode ainda ameaçar. Mas serve apenas para isso: para que não se perca a sensação humana, a resposta endócrina ao ato de brincar com fogo.

Não restará cheiro, muito menos saudade. Não se dispersará em curvas, em planos, em suspiros ou desejos póstumos. Precisa manter a magnitude. É relâmpago. É explosão. Não carrega punição como acessório, é erro só e pronto. É a única coisa ímpar nisso tudo. A ação, a vontade, se unem pelo velho e único caminho retilíneo que liga dois pontos. Dois pontos certos a desejar o erro.

Desconheço coisa mais próxima de um grande acerto que um erro bem cometido. 
Eis o plano.

Imagem capturada do site: www.cheffrode.net

12 comentários:

Sylvia Araujo disse...

As palavras estavam aqui dentro, meio encarceradas, implorando vazão - um susto de razão que fizessem com que parecessem mais razoáveis em mim. Eis que vem você e erra. No melhor acerto possível: o de saber-se humana e cometer - tudo magnanimanete planejado - o des-ser.

Tua fã, cheia de saudade.

Beijoca

Carol Freitas disse...

Eis a necessidade.

Desconheço felicidade plena sem vestígio de erro passado.

;)

Anônimo disse...

Belíssimo texto.

É o tipo de erro que consciência logo perdoa!

Thai Nascimento disse...

Ainda que a gente não queira, os erros fazem parte da vida. Se tenho medo de cometê-los às vezes, é porque assusta não ter tudo sob controle. Mas quando é que tudo está sob controle, heim?

Adorei teu blog, teus textos, Parabéns.

certamente voltarei em breve.

Gisa Carvalho disse...

A gente sempre sabe quando está errado e erra mesmo assim. Se deste não resta nem a saudade, menos mal. Erros deixam marcas e fortes. Mas são essas tais marcas que nos ensinam, nos mostram se vale ou não a pena continuar errando. Tem erros que se justificam pela vontade. Como já foi dito em outro texto, "não é que me falte medo, mas é que me sobra vontade". Isso nos faz errar. Mas bom mesmo é quando erramos e o que era erro torna-se um troféu.

Beijos, Moni! Adoro te ler!

Letícia Losekann Coelho disse...

Pois... E a negação do erro existe quando somos adultos, não? Existe. A gente acha que não deve errar, ou se errar deve-se não se importar ou ainda fingir que não aprendeu nada com isso, nem mesmo acertar.
E a gente erra e não se cansa de errar, como tu escrevestes no final: "Desconheço coisa mais próxima de uma grande acerto que um erro bem cometido. Eis o plano"
Porque errando e fazendo cagadas ( desculpe o "cagadas") é possível aprender. E todo dia é perfeito para errar...
***
Simplesmente impecável, Mo! Nunca o erro foi tão bem desenhado com nesse texto.
Beijos

Ricardo Novais disse...

Como diria o outro: 'humano, demasiado humano'.

Que você escreve bem, não é segredo; que teus textos são profundos e instigantes, eu também já sabia. Mas esta crônica, minha querida, parece querer tragar o leitor; e se vai percorrendo as linhas, com muito cuidado para não perder nada - pois tudo nele é importante - e, de repente, os olhos e as palavras confundem-se e fundem-se, no erro.

Sublime, Mônica!

Beijo,
Ricardo.

Alisson da Hora disse...

E nós vamos sendo "tragados" pela sublimidade de imagens e sensações...
E nós vamos lutando contra essa resposta endócrina ao ato de brincar com fogo...

beijo...

*** Cris *** disse...

"É erro tão maduro que precisa ser saboreado já."
Gostei disso...rs.
Ótima semana!

Notícia em Verso disse...

Gostei do blog. Visual agradável, segue uma linha interessante.

Também tenho um, voltado aos versos,contudo, mais direcionado às notícias.

Bruno
(noticiaemverso.blogspot.com)

gloria disse...

Um erro cometido até o talo. Sem que sobre nada. A culpa é algo de amanhã, já reparou? Isso, se chegar. É que o erro errado, desde a intenção, carrega determinação. Como diz Letícia, um impecável escrito sobre o erro. Aqui, cada linha fica vez por vez, melhor. Agora, você sabe, com mais tempo, vou poder voltar, voltar e ficar. Belo acerto, o teu erro! bjs

ALUISIO CAVALCANTE JR disse...

Querida amiga

Há temas que nos pegam
de surpresa como este que
fala tão bem do Erro.
Escritos de uma forma
que acompanha o nosso
respirar,
de repente
ganham vida em nossa vida.

Que sempre haja tempo para os sonhos
em tua vida.