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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Alquimista


A falta mais exata é daquele cheiro que eu não lembro. Talvez por ter passado de tal forma rápida e lancinante a ponto de não me deixar esquecer o resto, que ficou muito bem guardado.

Ouvi: - Não há fórmula! E esbravejo não ter visto se constatar o infalível método, já tão conhecido: de súbito, cretino, a me levar pela mão, dizer o mesmo repertório canalha, fazer um comentário dispensável, repetir as cenas batidas, ser previsível. Seria muito mais fácil. Junto com o sol, viria a decepção, amenizada pelo fato de ser esperada e a minha constatação científica de que  é sempre assim e sobre o meu salto, protegida pelo peito estufado da experiência, destilar, em metáforas, o veneno de mais um mito quebrado. Arranharia o reverenciado quadro. Destituiria o festejado rei.

Mas não.

Ouvi: - Não há fórmula. E ali estava a sabedoria. Era frase hipnótica que mandou às favas minhas infalíveis receitas, meus escudos de proteção que mantiveram, quase sempre, pelo menos um pé bem firme no chão.

Olhos de serpente e coração de pedra. E na boca, além da maciez obscena, a frase cimentada a me imobilizar:

- Não há fórmula.

E não há. Lembro que o cinza da noite chegava até o chão do preto asfalto. Lembro que não havia mais ninguém. Lembro de duas mãos a segurar meu rosto garantindo que suas palavras-flecha entrariam por todos os buracos da minha cabeça oca, me fazendo crer que mais tarde, pouco tempo depois dali, seria amanhã e que dias adiante, haveria um dia de festa. Só do cheiro não consigo lembrar.

E eu tinha pressa. Queria o amanhã mais cedo. Queria o dia de festa que viria depois. E era tudo tão quase-certo, que mal podia esperar acordar. Aflita, escolhi ver o dia chegar. Mas o amanhecer, o entardecer e os dias seguintes provaram que o mais importante fora dito no início, feito cartão-de-visita e com isso, absolveu-se de todas as culpas:

- Não há fórmula.

Imagem: CC (Creative Commons)

17 comentários:

AC disse...

Excelente texto!

Beijo :)

Myrela disse...

Bahhh!!!
Diria que se não for o melhor, é um dos melhores que já escreveste.
Impressionante a concretização da situação e dos sentimentos nas frases perfeitamente escritas! Parece que eu tava vendo...
Tô morta de curiosidade! rsrsrs

Rafael Sperling disse...

A fórmula é: polpa de açaí + guaraná + água.

Edu disse...

Vc quer me matar!

Embora vc tenha dito a mais pura verdade, sempre tem como nos aproximarmos de um padrão, um padrãozinho bem pequenino, qualquer coisa q faça uma mente ansiosa ou um control freak manter os pés no chão!!!

Mas vc tem razão: não há razão. Não há fórmula.

MALDIÇÃO!!!!!!!

Bejo! hehe

Aninha Kita disse...

Nooosa, que lindo! Que profundo, artístico, misterioso.
É o tipo de texto que eu leio e me vem aquela ideia "putz, por que eu não escrevi isso antes?". hehe

Maravilhoso, Moni!

Beijos!
Ana

ALUISIO CAVALCANTE JR disse...

Querida amiga

Como é bom voltar
a este espaço de amizade
e beber desta fonte
de inspiração.
Não há fórmulas...

Tudo o que existe é o presente,
e o inesperado diante dele.

A vida é o nosso milagre particular.

Carol Freitas disse...

E eu acho injusto não ter fórmula.
Mas tb não acharia sedutor se a encontrasse por aí em qualquer página de livro...

Não há fórmula, mas há coração!

Moni, sua bonita!
E o texto? Tão bonito qto!

Bjo!

ítalo puccini disse...

e a gente persiste, insiste, não desiste, não é?

teus textos pedem sempre muito mais do que uma leitura.

grande beijo, moni!

Eduardo Trindade disse...

No fundo, só queremos um pequeno vislumbre de terra firme para então nos lançarmos no precipício, corda-bamba sem rede de proteção.

Sueli Maia (Mai) disse...

Com ou sem fórmulas, há uma química que explode por debaixo da pele...
Mas ele (ou o pensamento) avisou: - não há fórmula! Melhor quando se é único.
Bom mesmo é poder ler um texto assim.

P.S.

Te achei no "Poesia Rápida".

abraços

NDORETTO disse...

Precisamos de sonhos e você escreveu isso. Todo mundo precisa ler isso. Lindo!!!!
(Gosto demais do que escreve)

Beijo,
Neusa

disse...

E mesmo que houvesse não seguiríamos.
Fórmulas são 'proteções' que não protegem nada na verdade.

Para viver é preciso arriscar...

Beijo sua linda!

Sara Kellyne. disse...

" E eu tinha pressa. Queria o amanhã mais cedo. Queria o dia de festa que viria depois. E era tudo ta quase-certo, que mal podia esperar acordar. "

Obrigada por colocar em palavras o que está pulsando em minha alma!

Tens razão, não há fórmula, e este é o grande prazer! É o que nos faz criar, viver da forma que desejarmos, e que torna inesquecível!

Te amo.

Fê Costa disse...

A Primeira Pessoa.

O ir e vir é assim, digo: envolto ao bel prazer do acaso feito pelas mãos de um Deus que adora brincar de não revelar . Detalhe; Eu também não me lembro do seu cheiro.

Me confundo ao mar e mesclo-me com o sal de teu movimento.

- Inodoro ??? Presto atenção com ainda maior força, mas, a única coisa certa foi não descobrir o teu cheiro passando.

Então, embriagado viajo, transformando a palavra silencio no elixir poético daquele mesmo Deus. (o que adora brincar)

Prata faço ouro, e entoou o único canto que sei – O Das S a u d a d e s !

- Ele me deixa.

Por fim, descubro algo maior que o cheiro não revelado e tom de suas fanfarrices se faz verdade.

Eu – O habitante do passado quis ter você “Porque não entendo a perfeita dimensão da alquimia do vento e não tenho escolhas” Sou Lira !!!

***********************************
É MTO BOM BOM LER-TE ! SAUDAÇOES FRATERNAS, ABRAÇOS A TDS OS SEUS.

F.C.

Rafaela Gomes Figueiredo disse...

Moni,
as tuas 'proesias' são um deleite pra qualquer tempo, sabia? - cinza [por dentro e fora] ou mesmo azul e perfumado [como a primavera].

que lindeza esse percurso pela lembrança no esquecimento!

acho que a fórmula é a própria falta [dela]...

beso

Letícia Losekann Coelho disse...

Uau que lindeza!
Não existe fórmula... É injusto de tão correto, cada um com a sua, cada qual com a dúvida. E quando ficamos tentando encontrar a fórmula, acabamos não vivendo, procede? E a gente insiste em dizer que não é exato e quer a exatidão da fórmula, o que vai resultar... O correto!
Adorei te ler, viu flor? Uma das prosas mais belas!
Beijos

Paulo Rogério disse...

Moni, gostei do "repertório canalha". Sua escrita é deslumbrante. A paixão não se enquadra senão em seus transbordos.
Beijo!